Monday 2 April 2012

A Neurose nossa de cada dia


A Neurose nossa de cada dia


Meu telefone celular toca por vota de 06h30min da manhã, resmungo, amaldiçoou céus e terra, tento-me sabotar, mas acabo por levantar. Lembro-me do meu update no Facebook ontem à noite: “Se Frodo consegue levar o anel ate Mordor, você também consegue sair da cama”. Sorrio e levanto-me.

Mais uma semana começa acima do paralelo 51° Norte. Se bem que essa semana é mais curta, apenas quatro dias, afinal a Páscoa está a caminho e com isso alguns dias de descanso. Durante os próximos quarenta minutos sigo como um autômato pela casa eu vou de um cômodo para outro. Saio porta fora e logo estou dentro do trem a caminho de Londres.

Não posso deixar de notar as pessoas a minha volta, companheiros de luta e viagem que provavelmente enfrentaram as mesmas batalhas pessoais que enfrentei ao acordar. Muitos desses rostos são familiares, apesar de não nos falarmos ou mesmo nos cumprimentarmos, eles são pessoas que fazem parte da minha rotina. São seres que seguem seus caminhos, e que assim como eu, estão em busca de algo. Provavelmente eles estão à espera que seus sonhos e projetos se concretizem dentro dos prazos marcados, que aqueles dias de férias vão chegar logo, que o chefe vai finalmente parar de atrapalhar e dar um desconto, enfim... Espera sempre a espera.

Eu mesclo-me ao ambiente, e sigo a corrente de pessoas que estão ouvindo musica em seus telefones, ipads ou computadores. O tempo passa e completamente absortos em nossos próprios mundos, o trem chega a Saint Pancras International Station trinta e cinco minutos mais tarde. De lá entro em uma carruagem da Picadilly line, que miraculosamente não esta lotada, e mais uma vez me pego a analisar a imensidão de rostos a minha volta. Penso a respeito dos pontos vulneráveis das pessoas a minha volta, claro que esse processo é completamente mental, pois em uma cidade como Londres, não existe conversa em transporte público, as pessoas não se relacionam nesses ambientes, apenas se olham, e quando os olhares se cruzam os olhos mudam de direção, afinal não queremos dar a impressão e que estamos invadindo a vida alheia. Existem regras, que são entendidas sem a necessidade de explicação verbal. Mesmo sendo afetados pelo mundo dos outros a nossa volta, a nossa essência está conectada, enraizada ao nosso próprio mundo... Estação após estação, e após uma mudança de linha em Leicester Square, a vida segue e vinte minutos depois chego ao trabalho.

Da janela do vigésimo primeiro andar, eu vejo Londres se descortinando a minha frente. O sol brilha em uma típica manhã de primavera. Mesmo através das janelas de vidro duplo e da altura, eu consigo ouvir os barulhos que veem da rua.  A cidade esta viva. Sinto minha mente divagar enquanto pressiono o botão on do meu computador. Se somos constantemente afetados pelo meio, incluindo as pessoas o tempo todo, mesmo não tendo uma relação verbal com elas, se afetamos as pessoas a nossa volta da mesma forma, porque é tão complicado em darmos o real significado para essas relações? Ou pior, nós nem sequer percebemos quando estamos em contato com o meio?

Acredito que nos somos uma totalidade e que nosso funcionamento básico gira em torno da nossa auto regulação organísmica. Nós somos um sistema em equilíbrio onde trocamos tudo que precisamos com o meio que nos cerca, portanto, estamos em contato com um mundo circundante e que constantemente realiza trocas com o meio, ou seja, fazemos contato para satisfazer nossas necessidades dominantes e emergentes. O contato possui um funcionamento cíclico, que parte do contato à retração.

Aqui, abro um espaço para citar a teoria de J. Zinker (1979), o qual define o ciclo do contato da seguinte forma:


  • Awareness
  • (sensação): é o surgimento de impressões vagas, inquietude, que logo começa a se dar conta, passa a ter consciência. Geralmente e aquela situação onde sabemos que não estamos bem, que algo esta fora do lugar, mas que não sabemos exatamente o que e. Se a awareness se dá por completo, então somos capazes de identificar a nossa necessidade dominante naquele momento.
  • Energização/Ação: E o momento que a “ficha caiu”, sabemos que algo deve ser feito, e consequentemente nosso organismo convida seus músculos para a ação, há uma sensação crescente de energia, a awareness passa a ser organizada em prol de sua satisfação.
  • Contato: É nesse momento que se entra em contato com o que satisfará a necessidade, é o momento do encontro com a diferença (eu e não-eu), a transformação se dá, as figuras emergem de forma nítida. Aquilo que estava no subconsciente (fundo) vem à tona e se transformam em claras “figuras”.
  • Retirada / Conclusão: A necessidade foi satisfeita e o organismo se retira, neste momento há a resolução e o alívio, a energia começa a se retrair.
  • Retraimento: Aqui há o fechamento da Gestalt, a energia se retrai totalmente, têm-se a sensação de dever cumprido.


Mas o que isso tem haver com o tema desse texto: Já chegarei lá... O ciclo descrito anteriormente é conhecido como ciclo gestáltico, e reflete o funcionamento saudável do organismo. Durante este ciclo podem ocorrer interrupções e a energia pode ficar estagnada ou ser prolongada. Logo começam a surgir os distúrbios do contato, ou neuroses.

Quem já saiu da adolescência, sabe que nem sempre a vida segue os contos de fada, e à medida que a carroça avança, as melancias vão se ajeitando, e com o ajeitar das melancias ou com o balançar da carroça, a neurose surge! Às vezes sentimos que estamos em uma encruzilhada, nada parece bom, nada nos traz satisfação, geralmente isso acontece em momentos que não mais conseguimos identificar as necessidades dominantes e o nosso organismo, mesmo assim tenta restabelecer o equilíbrio perdido, dai advém os conflitos.

Para quem me conhece, sabe que minha formação principal é em Psicologia, mais ainda, em Gestalt Terapia, e devido a este fato, aqui eu uso o conceito da Gestalt para explicar meu pensamento. Caso você se sinta mais confortável, fique a vontade para usar o conceito de insight. O certo é que, qualquer que seja o termo, os assuntos não resolvidos ficam pendentes e o equilíbrio fica prejudicado, os sintomas neuróticos surgem como uma tentativa de reorganizar e assimilar as gestalts abertas, ou não satisfeitas. E vamos ser sinceros, todos nós sabemos exatamente o que é não ter nossas necessidades satisfeitas e toda a energia estagnada que advém desses fatos.

Vários autores, os quais eu estudei ao longo de minha vida acadêmica, descreveram o processo de formação e estabelecimento das neuroses. Freud possui especifico pensamentos e explicações, o behaviorismo, também, assim como o existencialismo. Para mim, um existencialista por convicção, eu acredito que o neurótico está continuamente interrompendo o processo de formação e de eliminação de percepções, não percebendo claramente quais e como são suas necessidades e suas emoções, e essa forma de agir o faz perder a oportunidade de completar suas gestalts e, portanto, satisfazer suas necessidades. Por sua vez, isto cria um contínuo estado de insatisfação, levando o neurótico a não pegar do ambiente aquilo de que ele precisa para manter seu equilíbrio e uma sobrevivência sadia, e muito menos contribui para dar ao ambiente aquilo que dele reclama e que serviria para conformá-lo de alguma forma. E um jogo vicioso, chega mesmo às raias da dependência e do vício, nos casos mais patológicos.

Para que nós possamos satisfazer as nossas necessidades é necessário que tenhamos a consciência das necessidades que surgem à medida que vamos fazendo escolhas ao longo da vida. E venhamos e convenhamos fazer escolhas acertadas, é um processo nada fácil e como resultado, o neurótico é um indivíduo repleto de interrupções, que interrompe a si mesmo no processo de satisfação das próprias necessidades, talvez por não conseguir fazer escolhas acertadas. Lembre-se que mesmo não escolhendo uma ou outra opção, acaba por ser uma escolha também, afinal de contas ficar em cima do muro também é uma escolha.

O indivíduo neurótico é antes de tudo fóbico, ele tem medo da dor e da frustração. Eles interrompem a si mesmos no processo de crescimento, as gestalts não resolvidas se acumulam e o protegem de estabelecer novos contatos com o mundo e as pessoas. Eles costumam estarem confusos quanto ao que sentem ou ao que fazem, não reconhecem quais são as suas reais necessidades, resultando em um autoconceito e uma autoestima frágil, e para sustentarem-se buscam constantemente apoio externo no ambiente, utilizando-se de manipulações e defesas estereotipadas para atingirem sua satisfação. Falta ao neurótico à assimilação das questões mal resolvidas, consequentemente o indivíduo passa a ser cheio de pontos cegos.

A espécie humana é a única capaz de existir. Existência, que pode ser traduzida pela capacidade de pôr para fora, projetar-se. Essa capacidade é caracteristicamente humana, só o ser humano transcende toda barreira, enquanto, outros seres seguem sua programação biológica, o homem se faz homem, se constrói com base na cultura, na história, e na sua própria individualidade, ou seja, é um ser biopsicossocial.
O homem passa a ter objetivos, sua condição de existência passa a ser o seu potencial, este então passa a dar sentido para si e sua trajetória. É o único ser que vive num constante vir-a-ser. Tudo que este é ainda estar por se fazer. O homem é por si só uma obra inacabada, tendo seu projeto, chame destino se lhe fica mais cômodo de entender, em suas próprias mãos. Antes de tudo, existência é possibilidade de se projetar, se construir.


Durante nossa trajetória, nos passamos por um meio social massacrante, devastador, cruel, que destrói e corrompe nossas potencialidades genuínas. Somente as crianças são puras, lembra-se deste dito popular? O caminho da existência humana é áspero e cheio de pedras, e para muitos a existência perde seu maior significado, perde-se o sentido, a nossa realização passa a estar cada vez mais distante. Algumas pessoas, sem sentido de vida são incapazes de viver plenamente. Na existência humana, mergulhar nas trevas faz parte da caminhada, no entanto, para sair das trevas é preciso encontrar o verdadeiro sentido de vida. Diante da nossa capacidade de auto realização, mesmo no deserto, a mais bela flor consegue florescer.


Uma boa Páscoa para todos nós, e que possamos usar o conceito desta celebração para de alguma forma renascer, entender como fazemos contatos, não só conosco, mas com o meio que nos cerca para assim podermos nos libertar da energia estagnada, e assim evitar que neuroses evolvam para um grau mais elevado. Desejo que muitas flores floresçam em vossos jardins.


Laureano Marques



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